A visita do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva e uma comitiva de ministros a Berlim, em dezembro, teve elogios
recíprocos e aprofundamento de parcerias, mas um tema provocou mal-estar entre
os dois países: os esforços da Alemanha para atrair enfermeiros brasileiros.
O país europeu projeta
um déficit de ao menos 280 mil enfermeiros nos próximos 25 anos, e uma das
apostas de Berlim para preencher as vagas é contratar profissionais do
exterior. Mas o ministro do Trabalho do Brasil, Luiz Marinho, não gostou da
forma como a Alemanha vinha tentando atrair os brasileiros.
Ele reclamou com o
ministro alemão do Trabalho, Hubertus Heil, em uma reunião privada entre os
dois em Berlim em dezembro, e tornou pública a insatisfação no programa Café
com o Presidente: "Estávamos com um problema relacionado com a intenção da
Alemanha de trazer trabalhadores da enfermagem para trabalhar aqui na Alemanha.
Mas não adotaram os procedimentos que nós tínhamos combinado", disse.
Qual é o conflito
Marinho e Heil assinaram
em junho de 2023, em Brasília, um memorando de entendimento para
estabelecer uma cooperação futura entre os dois países sobre migração de
mão de obra qualificada. Mas, antes disso, Berlim já tinha outros canais para
atrair enfermeiros do Brasil, em especial por meio de iniciativas desde 2018 da
Agência Federal de Emprego alemã (Bundesagentur für Arbeit – BfA), que
assinou um acordo com o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) em junho de 2022
para aprofundar esse recrutamento.
O Ministério do
Trabalho brasileiro disse à DW que tinha a expectativa de que, após a
assinatura do memorando de entendimento, o governo federal alemão suspendesse
as iniciativas para atração de enfermeiros brasileiros até que a cooperação
fosse estabelecida. Marinho pressionou para que o acordo entre a BfA e o Cofen
fosse suspenso, o que ocorreu no final de 2023.
A suspensão do acordo
também havia sido solicitada pela Federação Nacional dos Enfermeiros, que
representa 15 sindicatos estaduais da categoria.
Desde então, o
Ministério do Trabalho, o Cofen e entidades que representam os enfermeiros
seguem realizando conversas sobre o tema. Marinho conduziu em março uma reunião
a respeito, mas não há previsão de se e quando será firmado um novo acordo com
balizas para a migração de enfermeiros brasileiros para o país europeu.
A BfA suspendeu a
partir de janeiro novos programas de seleção de enfermeiros brasileiros.
Enquanto isso, Berlim segue procurando parcerias do tipo com outros países – em
março, o chanceler federal alemão, Olaf Scholz tratou do tema
diretamente com o presidente da Filipinas, Ferdinand Marcos Jr.
Quais são os números
O Brasil tem
741 mil enfermeiros inscritos na atividade, além de 1,8 milhão de técnicos
de enfermagem, segundo dados do Cofen. Os enfermeiros fazem curso de
bacharelado, que dura cerca de cinco anos, enquanto os técnicos fazem uma
formação de cerca de dois anos.
O país forma cerca de
50 mil novos enfermeiros por ano. Em 2022, segundo o Censo da Educação Superior
feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep), 51.348 novos enfermeiros receberam o diploma. No mesmo ano, o
Cofen registrou a inscrição de 49.489 novos enfermeiros na atividade – além de
133.9Na Alemanha, a enfermagem é uma profissão de nível técnico, com formação
de três anos e menor autonomia e complexidade nas tarefas hospitalares. Em
junho de 2023, o país europeu tinha 1,2 milhões de enfermeiros na ativa, dos
quais 140.329 (12%) não eram alemães. A participação de brasileiros vem
crescendo, mas é muito baixa: 1.252 eram do Brasil, ou 0,1% do total,
segundo dados da BfA.
Devido à natureza
diferente da formação em enfermagem no Brasil e na Alemanha, a comparação
direta entre os números de enfermeiros é problemática. Uma aproximação, também
imprecisa, é comparar a soma de enfermeiros e técnicos de enfermagem no Brasil
com o número de enfermeiros na Alemanha. Nesse cálculo, o Brasil tem 11,8
desses profissionais de saúde a cada mil habitantes, enquanto a Alemanha tem
14,2 enfermeiros a cada mil habitantes.
Em 2023, o governo
alemão informou que tinha a intenção de atrair até 700 enfermeiros brasileiros
por ano para trabalhar no país.
Como funciona a
migração de enfermeiros
Durante a vigência do
acordo com o Cofen, a BfA anunciava periodicamente processos seletivos para
enfermeiros brasileiros que desejavam migrar para a Alemanha. Os candidatos
selecionados recebiam curso de alemão gratuito e uma bolsa mensal de 500 euros
mensais (R$ 2.800) pelo período de 8 a 12 meses, para se dedicar exclusivamente
ao aprendizado do idioma, até obter o certificado do nível intermediário B1.
Os enfermeiros depois
se mudavam para a Alemanha, com voo custeado pelo recrutador e um visto com
duração de até três anos para reconhecimento parcial de formação profissional.
Eles eram inicialmente contratados por hospitais alemães como assistentes de
cuidados – em uma seleção realizada em agosto de 2023, o salário bruto para
essa função era de 2.540 euros (R$ 14 mil).
Por até 12 meses, os
enfermeiros seguiam realizando curso de alemão gratuito, para alcançar o nível
B2, e acumulavam o trabalho como assistentes de cuidados com a preparação para
o exame prático e teórico de reconhecimento do diploma na Alemanha. Os
profissionais tinham até três anos após a chegada ao país para serem aprovados
nesse exame e, então, serem contratados como enfermeiros. Se não concluíssem o
processo no período, ficariam sem visto e precisariam retornar ao Brasil.
Os enfermeiros que
desejam migrar para a Alemanha ainda podem seguir esse roteiro, porém sem a
atuação da BfA e do Cofen, mas individualmente ou por meio de processos de
agências de recrutamento privadas, como já ocorre há alguns anos.
Algumas dessas agências
foram alvo no passado de denúncias de assédio moral e desrespeito de direitos
de enfermeiros que migraram para a Alemanha – um dos motivos que levaram o
governo alemão a buscar o acordo formal de cooperação.
Um dos problemas
denunciados era a exigência, por alguns recrutadores, de que o candidato
devolvesse o valor do curso de alemão, da passagem e dos procedimentos de
reconhecimento de documentos se decidisse rescindir o contrato – o que criava
altas dívidas em euro para os enfermeiros que não se adaptassem e decidissem
voltar ao Brasil durante o processo. Essa prática havia sido proibida no acordo
entre a BfA e o Cofen.
Cofen via
"oportunidade" para quem desejasse morar fora
O Cofen afirmou à DW
que assinou o convênio com a BfA após ter sido procurado pelas autoridades
alemãs, e indicado como o órgão competente para tal pelos ministérios da Saúde
e do Trabalho do então governo Jair Bolsonaro.
Alberto Cabral,
assessor legislativo do Cofen, disse que o órgão via o acordo como vantajoso
para a categoria, pois estabelecia cláusulas e direitos para os
profissionais e facilitava o caminho para os que tinham vontade de ter uma
experiência internacional.
"Uma oportunidade
para enfermeiros que quisessem morar em outro país, com certeza de boa
remuneração e com a possibilidade de se desenvolver pessoalmente e
profissionalmente", diz. Ele afirma que, na primeira rodada de seleção sob
o acordo, havia 150 vagas e 5 mil currículos foram enviados.
"O Brasil tem uma
capilaridade extraordinária de instituições de ensino superior e mão de obra
excedente na enfermagem. Podemos contribuir com outras nações, assim como
recebemos de outras, como pelo [programa] Mais Médicos reeditado no governo
Lula", disse Cabral.
Governo reclama de
"perda de trabalhadores qualificados"
O Ministério do
Trabalho brasileiro tem uma visão diferente. Maíra Lacerda, chefe da assessoria
especial de assuntos internacionais da pasta, disse à DW que o Cofen, por não
ser uma entidade sindical, não tinha legitimidade para assinar um acordo do tipo,
e que o governo recebeu reclamações de enfermeiros que migraram para a
Alemanha, citando problemas como o fato de os profissionais serem inicialmente
contratados como assistentes de cuidado.
"A formação de
enfermeiro é muito forte no Brasil, uma graduação longa, com residência. É
claro que os trabalhadores têm direito de ir aonde quiserem, mas temos
resistência a perder trabalhadores qualificados", disse Lacerda. Ela
também questionou o argumento do Cofen de que o Brasil teria excedente de
enfermeiros.
"Se outros países
estão precisando de pessoal qualificado, por que não pegam pessoas em locais de
vulnerabilidade e dão formação e as levam para trabalhar lá? Por que vir aqui
buscar um profissional que está pronto, formado, com investimento do governo
brasileiro, e levar para lá sem contrapartida?", questionou.
Sua declaração reflete
uma visão majoritária no atual governo federal sobre a mobilidade internacional
de trabalhadores. No final de abril, Lula também criticou a americana Boeing
por contratar engenheiros brasileiros. "Não é honesto vir aqui e roubar
nossos engenheiros, sem gastar um centavo para formá-los", afirmou o
presidente na ocasião.
A presidente da
Federação Nacional dos Enfermeiros, Solange Caetano, disse à DW que o acordo
"não era bom para os trabalhadores". Ela criticou a falta de
referências sobre a preparação para se adaptar a uma cultura diferente da
brasileira, e o fato de o enfermeiro permanecer na Alemanha por até três anos
aguardando a validação do diploma e, enquanto isso, trabalhando como cuidador,
o que, segundo ela, seria "subemprego".
Caetano também disse
que não há desemprego na categoria, mas uma má distribuição dos profissionais,
concentrados nos grandes centros urbanos e escassos nas áreas remotas. "Se
o trabalhador quiser migrar, ok, a gente apoia desde que tenha condições
garantidas, mas não estimulamos nem achamos que tem que ser estimulado."
A BfA afirmou à DW, por
meio de nota, que "lamenta" a suspensão do acordo com o Cofen e
entende que ele oferecia um mecanismo confiável para a "migração de
trabalhadores de forma regulada, justa e ética, de acordo com padrões
internacionais".
A agência alemã
ressaltou que não tem a intenção de provocar "fuga de cérebros" de
outros países, que respeita as preocupações do governo brasileiro e que
interrompeu novas iniciativas de recrutamento após a suspensão do acordo. A BfA
afirmou ainda que recebeu indicações do governo brasileiro de que as conversas
sobre uma nova cooperação seguirão no segundo semestre de 2024, mas não
comenta negociações em andamento.
O Ministério do
Trabalho e Assuntos Sociais alemão afirmou à DW que considera de "alta
prioridade" a implementação do memorando de entendimento com o Brasil
sobre migração de mão de obra qualificada. "É importante promover um
intercâmbio no qual os dois países, assim como seus trabalhadores,
beneficiem-se, e por meio do qual a imigração de mão de obra do Brasil seja
intensificada."
A pasta ressalta que a
maior parte da migração de trabalhadores ocorre de forma autônoma, por meio de
canais privados de seleção, e que o governo alemão desenvolveu um selo de
qualidade que obriga as agências privadas de recrutamento a conduzirem o
processo de forma justa e transparente.
Fonte:
https://www.dw.com/pt-br/busca-por-enfermeiros-gera-atrito-entre-alemanha-e-brasil/a-69140257